A
experiência da revolução Russa é, e continuará por muito tempo,
sendo crucial para a análise e construção concreta das lutas dos
oprimidos em todo o mundo. Mas ao contrário da outrora apologia e
exemplo heroico, é agora necessária para se entender os erros
cometidos e as razões de seu fracasso. Esse fracasso trouxe
prejuízos inestimáveis ao imaginário e a correlação de forças
da sociedade contemporânea, expiar essa tragédia se trata de uma
tarefa do socialismo, nas palavras de Kautsky: “A tarefa do
socialismo em relação ao comunismo é a de zelar para que a
catástrofe moral de certo método do socialismo não se torne a
catástrofe do socialismo em geral, e para que esta distinção
esteja claramente presente na consciência das massas.”
É na
crítica de Kautsky ao desenrolar da Revolução Russa, em especial
seu enfrentamento com Lênin (essencialmente expresso em obras como A
Ditadura do Proletariado de Kautsky e a Revolução Proletária e o
Renegado Kautsky de Lênin), que penso, podemos encontrar elementos
para consolidar uma visão de socialismo democrático. Muito antes de
marxistas contemporâneos, karl kautsky, natural de Praga, editor do
quarto volume do Das Kapital, nomeado por Engels seu testamenteiro
literário e descrito pelo próprio Lênin como “Mestre do
marxismo”, sentenciou o trágico desfecho para o projeto socialista
que decorreria da substituição da ditadura Tzarista pela chamada
ditadura do proletariado: “(...) A tentativa de edificar, na
Rússia, em um ambiente econômico e social atrasado, através do
terrorismo policial, burocrático e centralista, um modo de produção
socialista, está fadada por antecipação à falência. Nem um
feiticeiro poderá retirar o bolchevismo do impasse em que se
encontra.”
Ancorado no
marxismo como método de análise e não dogma de procedimentos,
Kautsky não dissocia a construção do socialismo da democracia e da
necessidade de um capitalismo desenvolvido. Importantes autores
destacaram a necessidade de se resgatar a produção teórica de
Kautzky para o debate do socialismo do século atual, Massimo
Salvadori, Quiniou, Ruy Fausto entre outros, todos estes com
reflexões bem sintetizadas em brilhante artigo do Professor Rubens
Pinto Lyra para o encontro da Anpocs em 2013. Militantes, como eu,
formados na tradição do chamado "marxismo-leninismo",
onde a menção a Kautsky não passava muito da afirmativa de Lenin
no prefácio do compêndio Doze Anos: "chauvinistas confessos
que traíram o marxismo; centristas que oscilam entre o chauvinismo e
o marxismo", devem cotejar o debate acerca do caráter e formas
adotadas pelo bolchevismo com a realidade de seus desdobramentos,
dessa forma não há como não reconhecer as razões do intitulado
por Lênin "renegado Kautsky", por óbvio como salienta
Lyra no artigo mencionado, isso tem um custo político, mas é
indispensável para formular o resgate do socialismo numa perspectiva
de fato marxista, o que pressupõem inclusive desafiar-se a revisões
desse pensamento como o fez Kautsky.
Dois são
os aspectos chaves da contribuição da crítica de Kautsky ao regime
soviético. O primeiro é a contraposição a ideia de que o
socialismo será resultado do levante de uma classe afundada na
miséria, ao contrário, é preciso desenvolver ao máximo as
capacidades produtivas do capitalismo para viabilizar um novo modo de
produção, a concepção marxista do colapso do capitalismo foi
revista acertadamente por Kautsky com a percepção, grosso modo, de
que o mesmo pode regular suas crises mantendo relativa estabilidade.
Somente a melhoria das condições materiais habilitam a classe
trabalhadora a luta pelo controle da produção. A elevação das
condições técnicas da classe trabalhadora aliadas ao seu
amadurecimento político são elementos indispensáveis a efetivação
de um novo patamar civilizatório de fato emancipatório, nas
palavras de Kautsky: "o socialismo está condenado a permanecer
uma utopia enquanto o proletariado não adquirir a capacidade de
autogestão de todas as organizações de que se apoderar incluindo o
estado" ou "(...) se limita a substituir os patrões
privados – expropriados de seu capital – por funcionários que,
no essencial, conservam as antigas relações de produção, fundadas
sobre o poder absoluto do diretor da empresa e da classe dominante do
estado (…)". O amadurecimento do proletariado remete ao outro
aspecto chave, e talvez mais importante para formulação atual do
projeto socialista: A democracia. Muito antes da crítica de Trotsky
a burocracia e as teses de Grasmsci sobre a disputa de hegemonia,
Kautsky identificou que o bolchevismo havia traçado uma rota de
totalitarismo, eliminando o pluralismo político mesmo nos círculos
socialistas, com a dissolução a assembleia constituinte em janeiro
de 1918, kautsky refuta a construção do socialismo nesses moldes.
Ao contrário do presente no pensamento da ortodoxia leninista, a
democracia tem que ser compreendida não como simples forma, mas como
conteúdo da luta socialista, nosso objetivo é a emancipação da
humanidade, o socialismo é a hipótese de melhor organização da
produção para viabilizar essa condição, mas ele não resolve o
tema da emancipação se baseado em um regime despótico, fundado no
terror como o soviético ou até mesmo fundado no afeto como o das
missões jesuíticas entre tantos outros exemplos possíveis.
O desfecho
estalinista da Revolução Russa e seus horrores, ao contrário do
preconizado por Trotsky e hoje significativamente aceito na esquerda,
não consistiu em mera degeneração burocrática, tratou-se sim, do
inevitável desfecho do impasse criado pelo bolchevismo, qual seja,
construir o socialismo sem democracia e condições materiais
adequadas. A conquista da democracia no capitalismo não pode ser
somente uma tática para facilitar o desenrolar da luta de classes, a
sua efetivação e aprofundamento permitem a classe trabalhadora
assumir a condição de governar, e estabelece as condições de uma
transição pacífica ao socialismo baseada na construção paciente
de opinião majoritária na sociedade, que deve ser tão potente ao
ponto de impedir ou reduzir a reação violenta das classes
dominantes, “(...) um regime que conta como o apoio das massas só
empregará a força para defender a democracia, e não para
aniquilá-la. Ele cometeria verdadeiro suicídio, se quisesse
destruir o seu fundamento mais seguro: o sufrágio universal, fonte
profunda de poderosa autoridade moral(...)”Kautsky.
Na execução
do socialismo a democracia deve ser ainda mais profunda, como já
frisamos nosso objetivo final é a emancipação humana e o fim de
todas as espécies de exploração e opressão e não somente a
organização do trabalho coletivo. A emancipação funda-se na
liberdade, portanto a democracia é conteúdo indispensável do
socialismo. E ao contrário de uma visão de impulso romântico, a
liberdade da opressão e exploração deve necessitar de um estado
regulador da economia e garantidor da democracia. Ao rever a teoria
marxista no que tange a extinção do estado, Kautsky retira do
marxismo seu resquício de utopismo. Como bem sintetizou o Professor
Rubens Lyra: “(...)para Kautsky, o Estado, como órgão regulador,
é necessário sob o socialismo, embora expungido de seu conteúdo de
classe. Isto porque a sociedade continuaria a necessitar de um órgão
que contenha seus impulsos particularistas. Quer dizer, de um novo
Estado, apoiado numa “democracia sem classes”. Pensar o
socialismo do século XXI não trata simplesmente de reeditar os
pressupostos da corrente social-democrata do inicio do século XX ou
de renegar Lênin, mas resgatar o pensamento de kautsky do limbo ao
que foi relegado pela força do estado soviético e sua polarização
com as potências capitalistas, auxilia sobre maneira a recompor o
ideário socialista em sintonia com a teoria marxista e inspira a
usar dessa ferramenta com seu grande mérito, o de ser um método de
análise fundado na realidade material, o que exige até mesmo sua
constante e criteriosa revisão.
Para além
do plano teórico, cabe cotejar essas reflexões ao projeto em curso
no Brasil. O governo dirigido pelo PT conecta-se com elementos
significativos da construção de um socialismo democrático. O PT
fez a opção da democracia como valor, seu governo é fruto da livre
escolha da população brasileira e suas ações não rumaram no
sentido de supressões da liberdade, respeitando inclusive os
mecanismos distorcidos de representação parlamentar. Essa opção
restringe, é claro, a implementação de determinadas medidas, mas a
longo prazo consolida a construção de maioria como método das
transformações. No campo econômico o governo petista esforça-se
para trazer a tona imensas parcelas da população outrora excluídas
das benesses da produção, com isso incrementa o desenvolvimento da
produtividade do trabalho ampliando a participação econômica do
proletariado e sua capacidade de demandar mais. No terreno da
política, no entanto, não basta a preservação do atual modelo
democrático, é preciso aprofundá-lo para permitir um radical
amadurecimento político das massas. Ousar em medidas que transfiram
dos monopólios de comunicação o poder da informação, que
democratizem a representação no parlamento e criem mecanismos de
participação direta na gestão do estado, são desafios urgentes
não só aos propósitos do projeto petista como de sua própria
manutenção e sobrevivência na disputa da hegemonia social.
*Luciano Lima
Presidente
PT-Pelotas/RS
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