sábado, 13 de setembro de 2014

AS RAZÕES DO RENEGADO KAUTSKY E O SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

    A experiência da revolução Russa é, e continuará por muito tempo, sendo crucial para a análise e construção concreta das lutas dos oprimidos em todo o mundo. Mas ao contrário da outrora apologia e exemplo heroico, é agora necessária para se entender os erros cometidos e as razões de seu fracasso. Esse fracasso trouxe prejuízos inestimáveis ao imaginário e a correlação de forças da sociedade contemporânea, expiar essa tragédia se trata de uma tarefa do socialismo, nas palavras de Kautsky: “A tarefa do socialismo em relação ao comunismo é a de zelar para que a catástrofe moral de certo método do socialismo não se torne a catástrofe do socialismo em geral, e para que esta distinção esteja claramente presente na consciência das massas.”
    É na crítica de Kautsky ao desenrolar da Revolução Russa, em especial seu enfrentamento com Lênin (essencialmente expresso em obras como A Ditadura do Proletariado de Kautsky e a Revolução Proletária e o Renegado Kautsky de Lênin), que penso, podemos encontrar elementos para consolidar uma visão de socialismo democrático. Muito antes de marxistas contemporâneos, karl kautsky, natural de Praga, editor do quarto volume do Das Kapital, nomeado por Engels seu testamenteiro literário e descrito pelo próprio Lênin como “Mestre do marxismo”, sentenciou o trágico desfecho para o projeto socialista que decorreria da substituição da ditadura Tzarista pela chamada ditadura do proletariado: “(...) A tentativa de edificar, na Rússia, em um ambiente econômico e social atrasado, através do terrorismo policial, burocrático e centralista, um modo de produção socialista, está fadada por antecipação à falência. Nem um feiticeiro poderá retirar o bolchevismo do impasse em que se encontra.”

    Ancorado no marxismo como método de análise e não dogma de procedimentos, Kautsky não dissocia a construção do socialismo da democracia e da necessidade de um capitalismo desenvolvido. Importantes autores destacaram a necessidade de se resgatar a produção teórica de Kautzky para o debate do socialismo do século atual, Massimo Salvadori, Quiniou, Ruy Fausto entre outros, todos estes com reflexões bem sintetizadas em brilhante artigo do Professor Rubens Pinto Lyra para o encontro da Anpocs em 2013. Militantes, como eu, formados na tradição do chamado "marxismo-leninismo", onde a menção a Kautsky não passava muito da afirmativa de Lenin no prefácio do compêndio Doze Anos: "chauvinistas confessos que traíram o marxismo; centristas que oscilam entre o chauvinismo e o marxismo", devem cotejar o debate acerca do caráter e formas adotadas pelo bolchevismo com a realidade de seus desdobramentos, dessa forma não há como não reconhecer as razões do intitulado por Lênin "renegado Kautsky", por óbvio como salienta Lyra no artigo mencionado, isso tem um custo político, mas é indispensável para formular o resgate do socialismo numa perspectiva de fato marxista, o que pressupõem inclusive desafiar-se a revisões desse pensamento como o fez Kautsky.
    Dois são os aspectos chaves da contribuição da crítica de Kautsky ao regime soviético. O primeiro é a contraposição a ideia de que o socialismo será resultado do levante de uma classe afundada na miséria, ao contrário, é preciso desenvolver ao máximo as capacidades produtivas do capitalismo para viabilizar um novo modo de produção, a concepção marxista do colapso do capitalismo foi revista acertadamente por Kautsky com a percepção, grosso modo, de que o mesmo pode regular suas crises mantendo relativa estabilidade. Somente a melhoria das condições materiais habilitam a classe trabalhadora a luta pelo controle da produção. A elevação das condições técnicas da classe trabalhadora aliadas ao seu amadurecimento político são elementos indispensáveis a efetivação de um novo patamar civilizatório de fato emancipatório, nas palavras de Kautsky: "o socialismo está condenado a permanecer uma utopia enquanto o proletariado não adquirir a capacidade de autogestão de todas as organizações de que se apoderar incluindo o estado" ou "(...) se limita a substituir os patrões privados – expropriados de seu capital – por funcionários que, no essencial, conservam as antigas relações de produção, fundadas sobre o poder absoluto do diretor da empresa e da classe dominante do estado (…)". O amadurecimento do proletariado remete ao outro aspecto chave, e talvez mais importante para formulação atual do projeto socialista: A democracia. Muito antes da crítica de Trotsky a burocracia e as teses de Grasmsci sobre a disputa de hegemonia, Kautsky identificou que o bolchevismo havia traçado uma rota de totalitarismo, eliminando o pluralismo político mesmo nos círculos socialistas, com a dissolução a assembleia constituinte em janeiro de 1918, kautsky refuta a construção do socialismo nesses moldes. Ao contrário do presente no pensamento da ortodoxia leninista, a democracia tem que ser compreendida não como simples forma, mas como conteúdo da luta socialista, nosso objetivo é a emancipação da humanidade, o socialismo é a hipótese de melhor organização da produção para viabilizar essa condição, mas ele não resolve o tema da emancipação se baseado em um regime despótico, fundado no terror como o soviético ou até mesmo fundado no afeto como o das missões jesuíticas entre tantos outros exemplos possíveis.
    O desfecho estalinista da Revolução Russa e seus horrores, ao contrário do preconizado por Trotsky e hoje significativamente aceito na esquerda, não consistiu em mera degeneração burocrática, tratou-se sim, do inevitável desfecho do impasse criado pelo bolchevismo, qual seja, construir o socialismo sem democracia e condições materiais adequadas. A conquista da democracia no capitalismo não pode ser somente uma tática para facilitar o desenrolar da luta de classes, a sua efetivação e aprofundamento permitem a classe trabalhadora assumir a condição de governar, e estabelece as condições de uma transição pacífica ao socialismo baseada na construção paciente de opinião majoritária na sociedade, que deve ser tão potente ao ponto de impedir ou reduzir a reação violenta das classes dominantes, “(...) um regime que conta como o apoio das massas só empregará a força para defender a democracia, e não para aniquilá-la. Ele cometeria verdadeiro suicídio, se quisesse destruir o seu fundamento mais seguro: o sufrágio universal, fonte profunda de poderosa autoridade moral(...)”Kautsky.
    Na execução do socialismo a democracia deve ser ainda mais profunda, como já frisamos nosso objetivo final é a emancipação humana e o fim de todas as espécies de exploração e opressão e não somente a organização do trabalho coletivo. A emancipação funda-se na liberdade, portanto a democracia é conteúdo indispensável do socialismo. E ao contrário de uma visão de impulso romântico, a liberdade da opressão e exploração deve necessitar de um estado regulador da economia e garantidor da democracia. Ao rever a teoria marxista no que tange a extinção do estado, Kautsky retira do marxismo seu resquício de utopismo. Como bem sintetizou o Professor Rubens Lyra: “(...)para Kautsky, o Estado, como órgão regulador, é necessário sob o socialismo, embora expungido de seu conteúdo de classe. Isto porque a sociedade continuaria a necessitar de um órgão que contenha seus impulsos particularistas. Quer dizer, de um novo Estado, apoiado numa “democracia sem classes”. Pensar o socialismo do século XXI não trata simplesmente de reeditar os pressupostos da corrente social-democrata do inicio do século XX ou de renegar Lênin, mas resgatar o pensamento de kautsky do limbo ao que foi relegado pela força do estado soviético e sua polarização com as potências capitalistas, auxilia sobre maneira a recompor o ideário socialista em sintonia com a teoria marxista e inspira a usar dessa ferramenta com seu grande mérito, o de ser um método de análise fundado na realidade material, o que exige até mesmo sua constante e criteriosa revisão.
    Para além do plano teórico, cabe cotejar essas reflexões ao projeto em curso no Brasil. O governo dirigido pelo PT conecta-se com elementos significativos da construção de um socialismo democrático. O PT fez a opção da democracia como valor, seu governo é fruto da livre escolha da população brasileira e suas ações não rumaram no sentido de supressões da liberdade, respeitando inclusive os mecanismos distorcidos de representação parlamentar. Essa opção restringe, é claro, a implementação de determinadas medidas, mas a longo prazo consolida a construção de maioria como método das transformações. No campo econômico o governo petista esforça-se para trazer a tona imensas parcelas da população outrora excluídas das benesses da produção, com isso incrementa o desenvolvimento da produtividade do trabalho ampliando a participação econômica do proletariado e sua capacidade de demandar mais. No terreno da política, no entanto, não basta a preservação do atual modelo democrático, é preciso aprofundá-lo para permitir um radical amadurecimento político das massas. Ousar em medidas que transfiram dos monopólios de comunicação o poder da informação, que democratizem a representação no parlamento e criem mecanismos de participação direta na gestão do estado, são desafios urgentes não só aos propósitos do projeto petista como de sua própria manutenção e sobrevivência na disputa da hegemonia social.

*Luciano Lima
 Presidente PT-Pelotas/RS